Playlists

Artistas e pesquisadores que trazem em seu trabalho criativo o diálogo com nossas tradições populares, viajam pelo Acervo Maracá selecionando e comentando registros especiais por sua beleza, raridade ou representatividade, convidando o público a uma escuta afetiva e atenta. Os convidados dessa primeira edição são os artistas Juçara Marçal, Siba e Renata Mattar, o pesquisador Rafael Galante e Renata Amaral, criadora do acervo.

SELEÇÃO

Tiganá Santana

Tem sido uma oportunidade sinceramente preciosa poder mergulhar no Acervo Maracá. O trabalho que a Renata e as outras pessoas que trabalham consigo têm feito marca uma ética-estética de registro que nos dá a pensar. É pensar, mais do que nunca, no que se registra, em que conjuntura histórico-política se faz isso, por que razão e como - em que “como” demanda uma responsabilidade de conhecer, nas ondulações do tempo, os universos dos quais se aproxima e com os quais se estabelece aliança. Esse acervo junta pedras da memória profunda do território brasileiro e vaza o seu brilho de retomada, Atlântico afora, regressando-avançando para o Benim. Este pequeno conjunto de registros que selecionei acompanha a travessia Brasil-Benim (que me faz lembrar quando a minha mãe para lá voltou, na década de 1980, e trouxe notícias de um mundo tão diverso quanto intimíssimo em relação à sua própria história e à de tantos que conhecemos), saúda os voduns, e desemboca no Brasil maranhense, encantado como a realidade ordinária de um povo pode ser (já que somente o cotidiano tem a força coletiva suficiente para resguardar o extraordinário).

Quando solicitei a Renata o acesso, para uma pesquisa específica, aos registros da Casa das Minas, no Maranhão - pedra primeira estruturada por Nã Agontimé (a grande mãe sequestrada do antigo Reino do Daomé) -, ela me disse que a qualidade das gravações não era boa. Mesmo assim, adentrei aqueles sons e presenças, datados de 1999, e não havia como não me emocionar com o tipo de evocação ali vertida.
Em homenagem, portanto, à possibilidade de gravar e vivenciar presenças com a sua nebulosidade inerente, todos os excertos apresentados constituem-se pela neblina que não permite entender ou se ter a ilusão de alguma decodificação daquele mistério tangível, feito de matéria e sonho. Afasta-se, por conseguinte, qualquer ideia de objeto devassável à manipulação de etnografias, ainda que se construam aquelas cientes, inclusive, de alteridades radicais. Além da Casa das Minas e de cerimônias dos voduns, no Benim, foram trazidos a esta escuta momentos entoados pelo Terreiro Kamafeu de Oxossi e pela Casa Mamãe Oxum e Pai Oxalá, bem como, claro, o canto chuvoso e abrigador do Pai Euclides Talabyan. Que apuremos os sentidos e todo o repertório que nos chegar para que saibamos não saber; para que recebamos as audíveis oferendas antigas que ainda estão chegando, inclusive, replantando as complexidades e belezas brasileiras.

Vida longa a esse acervo!