Playlists

Artistas e pesquisadores que trazem em seu trabalho criativo o diálogo com nossas tradições populares, viajam pelo Acervo Maracá selecionando e comentando registros especiais por sua beleza, raridade ou representatividade, convidando o público a uma escuta afetiva e atenta. Os convidados dessa primeira edição são os artistas Juçara Marçal, Siba e Renata Mattar, o pesquisador Rafael Galante e Renata Amaral, criadora do acervo.

SELEÇÃO

Alessandra Leão

Adentrei esse acervo e me perdi inúmeras vezes dentro dele, porque adentrar esse tanto de som e imagem é um jeito de se perder e sobretudo de se achar dentro do Brasil. Tracei rotas, achei que ia por uma estrada, quando vi, estava em outra, páginas e páginas de anotações até aceitar que a deriva me levou para essa estrada que trilhei aqui, foi a do fundamento. Um fundamento pessoal. Uma parte do tanto do foi e é essencial no meu desejo de fazer o que eu faço nessa vida. O que me fundamenta como artista e como gente.

Convido aqui para seguirmos num caminho que fala de encontros com alguns dos maiores artistas que já encontrei e que mereciam e merecem mais, muito mais do que a história do Brasil insiste em tentar apagar.

Abrimos as portas na Jurema de D Sebastiana e passamos pelo meu amado Terreiro Xambá, ambos de Pernambuco. Eu imagino vocês que estejam aí, ouvindo essa playlist, seja bem quietinho imersos; ou quem sabe dançando e ouvindo tudo num som alto, que se espalha pela vizinhança; ou talvez caminhando pela rua com vontade de dançar, se esse for o seu caso: dance!

Chegamos até a fronteira entre Sergipe e Alagoas, nas terras do Povo Kariri Xocó, que tem um jeito de cantar sempre inacreditável de tão bonito. Das Alagoas, Mestra Virgínia de Moraes, compositora e mestra de reisado. Tive a honra de encontrá-la algumas vezes, eu muito novinha, início de vida adulta, começando a tocar, a imagem dela dançando guerreiros com Mestre Pitiguari me mostraram um brilho de vida e suas músicas nunca saíram da minha cabeça. Uma Mestra, uma criadora no sentido imenso. Tenho sua voz e presença neste mundo como algo muito próximo dos meus ouvidos e coração.

Encontrar a rabeca de Luiz paixão, aqui tocada junto com Biu Roque e Renata Amaral, no baixo, me fez abrir um sorriso de saudade e dançar pela sala. Luiz, gênio da rabeca. Se o sonho de todo instrumentista é ser reconhecido pelo som do seu instrumento, bastava Luiz "raspar” o arco nas cordas para saber que é dele que vem esse som.
No começo do meu caminho na música, cheguei em Biu Roque, amigo e fonte inesgotável de alegria e inspiração. Biu Roque não foi, ele é um dos maiores artistas que já conheci. Achei que conseguiria separar apenas uma ou duas músicas dele, engano. Ele era o último a parar de cantar e tocar, mesmo depois da barra do dia clarear. Ele é quem levantava todo mundo, quando se fazia silêncio no fim de festa, ou dentro da van.

Andei por outros sons que renovam minha alma e me fazem gostar muito de ter nascido nessa parte do mundo. Esse acervo da Maracá é sobre o que nos fundamenta, e ao mesmo tempo é também reveladora sobre como a nossa história foi forjada por caminhos tortuosos e duros com uma massa imensa da nossa sociedade. As Culturas Populares são feitas, em sua maioria, por movimentos coletivos de tradição e invenção. Mas sobretudo feita por indivíduos, por criadores, sujeitos das suas histórias e obras. Deixo vocês assim, na companhia de um dos maiores bancos de cavalo-marinho que já existiu: Biu Roque, Mané Roque, Mané Deodato, Luiz Paixão, Sidraque e Maíca. Na esperança de que a história do Brasil possa ser escrita de outro jeito, mais justo e digno com a imensidão desses artistas.