Playlists

Artistas e pesquisadores que trazem em seu trabalho criativo o diálogo com nossas tradições populares, viajam pelo Acervo Maracá selecionando e comentando registros especiais por sua beleza, raridade ou representatividade, convidando o público a uma escuta afetiva e atenta. Os convidados dessa primeira edição são os artistas Juçara Marçal, Siba e Renata Mattar, o pesquisador Rafael Galante e Renata Amaral, criadora do acervo.

SELEÇÃO

André Magalhães

Estou há décadas ao lado de Renata Amaral, viajando, produzindo e cuidando das tantas maravilhas de suas pesquisas — sempre com foco na tradição popular e seus mestres incríveis, incluindo as culturas originárias. Ao iniciar esta seleção, deparei-me com um acervo que é um universo infinito. Ao passear pela multidão de mestres e grupos, descobri gravações que nem sabia que que ela havia registrado. Foram manhãs, dias, noites, madrugadas e alvoradas colhendo as belezas musicais do nosso país. Um Brasil de fundamento, que poucos conhecem — de uma fartura e exuberância cultural sem igual.

Foi investigando essas pastas — ouvindo e me perdendo nelas — que cheguei ao universo das boiadas (Bumba Meu Boi) do meu querido Maranhão. Fui invadido por lindas memórias das festas de São João que vivi por lá. Não há como não se encantar com a diversidade dos bois, nem com a poesia sábia dos grandes mestres que cuidam desses grupos. Eles nos alegram e enchem nossos ouvidos de alegria com cantos, melodias e ritmos belíssimos — ora por sua complexidade, ora pela construção comunitária realizada por um povo simples, que, ao se juntar, transforma o batalhão em uma potência de arte e poesia.

Buscando nos áudios a saudade, fui sendo levado de volta àqueles lugares que vivi. As imagens dos grupos voltaram: as indumentárias, o boi que nasce e é batizado vestindo um bordado tão precioso quanto joias raras; as danças de índios e índias, caboclos de pena, vaqueiros, kazumbás… todos liderados por mestres e mestras que carregam a enorme responsabilidade de manter vivo um batalhão pulsante. Eles cuidam de tudo: danças, cantos, batucadas, bebida, alimentação — um movimento de prazer coletivo, que envolve toda a comunidade. É lindo de ver e viver.
Trouxe também os sentimentos de estar no meio do batalhão, que estão muito presentes nesse acervo. A seleção não foca apenas nas lindas toadas, mas também nas vivências: um passeio entre os pandeirões, uma missa de batizado, um pedido de licença para se apresentar aboiando… As toadas tratam de louvores a São João, São Pedro e São Marçal, atravessam os mistérios dos encantados e até falam dos acontecimentos do dia a dia. Os sotaques — de Pindaré, Matraca, Baixada, Zabumba, Costa de Mão e Orquestra — estão representados por diferentes grupos, mas sempre com a fé absoluta em São João como pano de fundo.

Ainda separei algumas das maiores preciosidades: os cantos de pé de ouvido de mestres incríveis que infelizmente já partiram, mas que foram — e continuam sendo — fundamentais não só na minha formação musical, como entre as maiores inspirações de vida: Pai Euclides, Mestre Humberto do Maracanã e Mestre Edmundo de Cururupu. São registros para ouvir e reouvir infinitamente.

Fico muito feliz em compartilhar este convite à audição. Que você faça uma linda viagem pelos bois do Maranhão. Ehh Boi!!!