Playlists

Artistas e pesquisadores que trazem em seu trabalho criativo o diálogo com nossas tradições populares, viajam pelo Acervo Maracá selecionando e comentando registros especiais por sua beleza, raridade ou representatividade, convidando o público a uma escuta afetiva e atenta. Os convidados dessa primeira edição são os artistas Juçara Marçal, Siba e Renata Mattar, o pesquisador Rafael Galante e Renata Amaral, criadora do acervo.

SELEÇÃO

Magda Pucci

Antes da primeira palavra, o som. Um som, cantado por um coletivo humano, tem o poder de evocar uma fundação cósmica. Em meio aos ruídos caóticos do mundo, esse canto gera um princípio ordenador. É um ato de criação. Sob essa frequência sonora invisível — e altamente poderosa — estabelece-se um acordo primordial, que projeta não apenas o fundamento de um cosmos sonoro, mas também a base do próprio universo social. Ele é a coluna vertebral de uma comunidade, o pulso compartilhado que diz: “estamos aqui, juntos”.

Ancorados por essa visão profunda, os povos originários existem na medida em que podem fazer música, cantar e dançar para não deixar o “céu desabar”, como disse Ailton Krenak. Esses povos se comunicam com mundos invisíveis, com seres do céu, gente-bicho, gente-fauna, criando um sentido que resiste às violências externas que os ameaçam constantemente. O canto, o ritmo, a melodia, as palavras sonorizadas tornam-se o tecido vivo dessas comunidades e seus saberes, a respiração comum que afasta o caos. Assim, a música se apresenta, desde sempre, como o mais intenso e visceral modelo utópico das sociedades que insistem em estar presentes na natureza, vivendo-a de forma plena, sem subtraí-la.

Nesta lista, vocês perceberão a predominância dos cantos dos Timbira, grupo formado pelos povos Krahô, Canela-Ramkokamekrá, Apinajé, Krikati, Gavião Pykopjê e Canela-Apanyekrá, habitantes de aldeias no cerrado do Maranhão. Para os Timbira, a “música é o som que se manifesta pela palavra soprada através da garganta”: o hõcrepöj. Este conceito une canto e saber, revelado pela junção de dois termos: garganta (hõ/jõ cre) e aparecer (pöj), formando o "saber que emerge da garganta". Como registrou a etnomusicóloga Kilza Setti em 2004, há cantigas de pátio; cantigas-convite; cantos da madrugada; cantos da manhã; músicas só das mulheres; outras só dos homens, cantigas de animação, mostrando que cantar é muito mais que produzir uma melodia — é ativar conhecimentos ancestrais, fortalecer laços comunitários e dialogar com o cosmos, mas também se divertir, gerar amjëkin — a alegria.
Para os Timbira, a música atua como a “cola cultural”. Segundo Lígia Raquel Rodrigues Soares, eles falam línguas diferentes, mas cultivam um idioma musical comum, capaz de criar uma rede sustentada por um código estético partilhado que transcende as barreiras linguísticas. É cantando que se entendem! Cantores e cantoras, guardiões dessa tradição, são os elos que mantêm pulsante o hõcrepöj, aprendendo e “garganteando” composições que pertencem a todos.

Além dos cantos Timbira, vamos ouvir os cantos-reza (mborahei) dos Guarani em São Paulo, que vivem no Jaraguá, nas aldeias Rio Silveiras e Krukutu; os poderosos cantos dos Kariri-Xocó de Alagoas; e dos Pankararu e Fulni-ô de Pernambuco, mostrando a origem da pisada do coco, do samba de roda, da ginga que chegou com os povos negros dos quilombos, que foram parar nas aldeias indígenas. Uma bela mescla!

Cada melodia é mais que um canto; é um universo completo, um acordo cósmico que ainda ecoa, convidando-nos a lembrar do poder que um único som, cantado em conjunto, ainda pode ter.

Agradeço a Renata Amaral pelo convite para mergulhar nesses cantos deste acervo incrível.

Esta playlist é uma viagem a esses cantos fundadores. São as vozes dos povos originários, os guardiões desse conhecimento ancestral.

Pressione "play" e ouça o mundo ser fundado, mais uma vez.